Transcrição

Neste bairro não fiz quase nada, vim quando foi da minha adolescência e tudo, que era lá no antigo bairro, que eram as barracas. Era tudo melhor do que agora no bairro, não temos ação nenhuma, não temos nada, já viu. Pronto. Estou a começar a gravação? Sim. Pode se apresentar e falar um pouco sobre si? Olha, eu sou Rosa Oliveira, tenho 73 anos, faço 74 daqui a dois meses, lá chegar, não é? O que é que eu hei de dizer mais? Sou reformada, fui reformada por doença e sou muito doente, sou doente do coração, sou doente, sou oncológica, tenho diversos problemas graves mesmo, não parece, sou muito ativa, percebes? É a minha sorte. E é, Deus nosso senhor me deixa cá andar, viver um dia de cada vez. Sim. Maneira que eu pouco tenho que fazer, faço as minhas coisinhas em casa, de vez em quando vou a um passeiozinho, não há aqui, tenho que pagar para ir, percebes? É a minha atividade, não tenho mais atividade nenhuma. Que memórias ou histórias marcantes possui do bairro? Memórias da minha infância isso, tenho guardadas, depois da adulta tenho os meus filhos, os meus netos, criei netos em pequeninos e tudo, vivia tudo ali comigo, fui muito feliz com eles todos, pronto, cada um arrumou a sua vida, os netos estão com os pais e também já são pais alguns, já sou avó, já sou a bisavó dos netos que eu criei. E maneira que eu, da minha infância, quando era com meus 7, 8 anos, tenho coisas gravadas da minha memória que me fizeram feliz, além de não ter nada de, como já tive ao longo da vida, não é? Que éramos pobres naquela altura, mas era tudo muito mais feliz, porque era tudo unido, as crianças, a maior parte delas já se foram embora, poucas pessoas da minha idade já restam. Mas eu ainda me lembro de coisas ao longo da minha vida, quando eu era meus 7, 8 anos, às vezes não havia para comer e a gente juntava-se um montinho deles e íamos, onde é a escola António Reus, havia ali um vazador, um ferro velho, onde compravam certas coisas, roupas velhas, que a gente apanhava, trapos, era o papel, eram até ossos da carne, a gente fazia dentro de sacos e íamos lá vender e então cada um fazia assim. Comprávamos massa, porque havia aqui uma mercearia aqui em frente, que depois havia uma taverna Carol Leandro, antes de mandarem as casas abaixo, que era ao largo da corralera. E então comprávamos esparguete, fazíamos esparguete com linguiça, fazíamos sopa, cada um, pois quando a gente não tinha nada para ir lá ao ferro velho, um ia buscar uma batata, um ia buscar uma cenoura, e a gente fazia jantarinhos, jantarinhos que dava para a gente comer, depois era uma roda, a gente fazia uma roda, estávamos ali, comíamos, com que andávamos histórias uns aos outros, todos se riam, passávamos assim um bocadinho divertidos, ríamos uns com os outros, andávamos aos cagalumes, naquela altura íamos aos cagalumes, íamos aos pirilampes agora, e andávamos às borboletas, quando chegava a primavera, era uma infância assim menos mau, depois comecei a adoecer e já muito novinha comecei a ir aos hospitais, as minhas irmãs também morreram muito novinhas, e eu é que me aguentei à medicina ter mais evoluída, quando a medicina teve mais evoluída já salvavam muitas operações ao coração, foi aí que eu deixei-me de ser operada, mas antes disso fui operada a um peito, tiraram-me o peito, depois fui operada ao coração, peito aberto, e estou aqui, correu tudo bem, quer dizer, mas pronto, até mancaram, tenho o aparelho ligado, não é para isso não é, porque me abriram aqui atrás por cima da costela, eu tudo o que me mandavam fazer eu fazia, porque era para ver se eu andava cá mais um bocadinho, e assim agora ando à conta de Deus um dia de cada vez, e vou andando, tenho problemas de rins, tenho tudo, e não parece, porque além disso agora já estou-me a sentir mais por causa das minhas pernas e tudo, mas eu sempre fui muito ativa, nunca mostrei aquilo que tinha, e tenho problemas muito graves, muito graves mesmo. Também já fez operação ao coração? Vejo peito aberto. Tirei o peito também, isto é uma prótese que eu não pude fazer a reconstituição, por causa do coração também. Olha, não sei se está a ver, se não está, se queres fazer mais alguma pergunta. Foi um bocadinho de cada. Foi um bocadinho de cada, olha. Na sua perspectiva, que mudanças mais importantes aconteceram no bairro ao longo dos anos? Olha, foi as casas, foi as casas, mas de resto não teve assim nada que evoluísse mais, além das casas. Por contrário, havia coisas que haviam de fazer e não fizeram. Pois, mesmo. Porque é como eu digo, quando era das barracas era tudo mais assiado. E agora a gente pede para virem limpar e tudo não vem. Começando, olha, começando por aqueles caixotes ali, às vezes vêm parar aqui, o lixo vai parar tudo lá abaixo, o terreiro está sempre entupido, depois a água não corre para ali, vai correr ali para aquele bloco. É uma coisa que não tem explicação, não barrem, não limpam o lixo, não limpam nada. É muito rato, grande. É filha, é, isto está mesmo todo. Antigamente eram as barracas e não havia nada disso. É verdade. Acho que essa é a última agora. Essa é a última também? Eu acho. Calma. Não sei. Sim, é a última. Não, não é a última nada. Já não há mais nada? Não, tem mais duas perguntas também. Ai. Quais são os seus sonhos ou expectativas para o bairro nos próximos anos? Olha, eu já não tenho expectativas nem nada. Porque conforme eu vos disse, eu vivo um dia de cada vez. Peço que haja algo de bom para o bairro por causa dos meus netos. E dos meus bisnetos. Pronto, da minha família. Agora para mim, eu não sei se vivo muito mais, não vivo. Está a dizer? Sim. Como eu te disse, eu vivo um dia de cada vez. Hoje em dia, já não me ralo que vão fazer isto ou que vão fazer aquilo. Para mim, já não me ralo. Vou vivendo um dia de cada vez. Sim, agora a última, está bem? De que forma gostaria de contribuir para o futuro do bairro através do seu papel? Não sei, não estou a ver de onde é que eu posso responder. Ok. Então este é o último, muito obrigada também. Não sei.

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